Veloz, luxuoso, estiloso, sanguinário – e com um ronco de
armar com um tridente o mais puro dos anjos. Lançado em 1971 e com produção
encerrada em 1980, o Dodge Charger R/T é, até hoje, um dos modelos que mais
torcem pescoços pelas ruas do País. No ano em que a Dodge comemora 100 anos de
existência, por que não um extenso guia de compra para ajudá-lo a realizar o
sonho de comprar seu Charger?
Nós vamos nos focar nos modelos mais cobiçados pelo público
de forma geral, os R/T de entre 1973 e 1977. São carros bastante salgados, com
valores de mercado que variam de entre R$ 25 mil e R$ 90 mil, de acordo com o
estado de conservação, cor (o triple black e as berrantes, como vermelho e
amarelo, são as mais disputadas) e grau de originalidade.
Antes de começarmos, duas observações: diferentemente da
plataforma B-Body do Charger americano, cujas dimensões se assemelham à do
Galaxie, o nacional é estruturado na compacta (para os padrões americanos…)
plataforma A-Body. Na verdade, o Charger brasileiro e o Dart são variações do
mesmo carro, com pequenas diferenças estéticas e mecânicas.
Visualmente, o Charger R/T possui dianteira exclusiva (grade
e moldura), capô com falsos respiros, coluna C com uma extensão de chapa
soldada à carroceria, teto coberto de vinil (opcional no Dart), volante e
bancos exclusivos e faixas esportivas nas laterais. Seu motor usa pistões que
geram um ponto a mais de taxa (8,4:1 – muito baixa para a gasolina atual),
escapamento 8×2 e câmbio manual de quatro marchas com trambulador no assoalho –
estes dois últimos foram padronizados no Dart no fim da década de 1970.
Cada ano do Charger possui uma identidade visual diferente:
detalhes como catálogo de cores, grades, faixas adesivas, volante e lanternas
mudaram – mesmo entre 1973 e 1977, período no qual os carros são mais
parecidos.
Passo a passo
A seguir apresentaremos os principais cuidados que você
precisa tomar ao verificar seu futuro Charger. Montamos o guia na ordem de
importância – é por isso que você vai ver o motor e o câmbio como as últimas
prioridades: são dois dos componentes mais robustos e de manutenção mais fácil
em um Dodge V8.
E tenha sempre em mente que estamos falando de um dos
clássicos nacionais mais caros e cobiçados do mercado: as referências de
valores são puxadas. Os Dodge só não são cobiçados pelos ladrões como ocorre
com Fuscas e Opalas porque eles chamam muito a atenção na rua e há uma
limitação muito grande de modelos no mercado – é seguro dizer que mais de 90%
dos carros já são conhecidos pelo meio.
Plaqueta de chassi: nem todo Charger é Charger
Por ser tão valorizado (em média, 50% mais que o Dart cupê)
e por ser relativamente fácil de se transformar um Dart em Charger, o que não
falta por aí são Darts convertidos. A questão não é se isso é bacana ou não –
colecionadores e apaixonados pela marca repudiam, mas há muitas destas conversões
que foram executadas com perfeição -, mas sim o valor de mercado: pagar valor
de Charger em Dart transformado é uma grande roubada. Checar o documento é o
primeiro passo, mas qualquer despachante bem relacionado consegue alterar o
nome do veículo. Por isso, a conversa passa para a plaqueta aí embaixo.
Todo Charger R/T a partir de 1973 é identificado pelo código
LP23 no campo “modelo”. Se você ver um Charger a partir de 1973 com o código
LS23, trata-se da variante de entrada LS, bastante disputada entre colecionadores.
Os Dart Coupé De Luxo, como mostra a plaqueta acima, usam o código LL23 (veja a
lista completa de modelos e códigos aqui). Aproveite que você está vendo
códigos e confira se a cor da carroceria bate com a da plaqueta: neste link
estão as mais comuns. Carros repintados com cores fora do catálogo ou que não
batem com a plaqueta valem menos. O máximo tolerado costura ser uma repintura
com cor existente no catálogo daquele ano.
Agora, uma notícia desagradável: já fizeram reproduções
destas plaquetas. Algumas são mais grosseiras, outras são mais precisas. Na
foto acima temos uma plaqueta de um Dart pouquíssimo rodado. Vale usar como
referência de padrão de pinagem e textura.
Lataria
Falando do veículo em si, este é o ponto mais crítico de
todo Dodge V8 nacional. O tratamento à corrosão da fábrica não era dos
melhores, o projeto da carroceria tende a acumular sujeira com umidade em
pontos críticos e, bem, estamos falando de um carro com mais de 30 anos de
vida. O exercício se divide em duas etapas: conferir a lisura e os vincos das
laterais, e depois investigar a corrosão.
A primeira etapa é fácil e rápida. Agache de forma que você
veja os reflexos como no Dart marrom aí embaixo. Mova a sua cabeça na
horizontal (Fat Family style) em direção ao veículo, afaste, volte. Você vai
ver que a imagem refletida “corre” pela lataria. É bastante difícil encontrar
um carro 200% liso e com vincos perfeitos – a própria estamparia brasileira não
era tão boa quanto a americana. Mas um carro todo ondulado não é bom sinal:
pode ter sido só um carro mal pintado, que passou pelas mãos de um funileiro
incompetente que tacou massa plástica onde não precisava. Mas também pode ser
um disfarce para podres e amassados. O valor precisa estar condizente com a
situação da lataria – com a observação de que um Charger com pintura gasta, mas
original de fábrica, vale ouro.
Observe também o alinhamento de portas, para-lamas e capô.
Levante o capô e veja se a travessa onde o radiador fica está 100% alinhada –
se estiver amassada, o carro já sofreu algum acidente.
A segunda etapa é mais complicada: procurar podres. E para
fazer isso, você vai precisar se mexer e sujar as calças no chão. É mais ou
menos como no caso das ondulações: não dá pra pagar uma fortuna em um carro com
rombos de corrosão. Mas um furinho ou outro é algo que dá pra resolver. Na
legenda não coube, mas quando estiver dentro do porta-malas, olhe também a
caixa onde as lanternas traseiras são fixadas – é outro ponto clássico de
apodrecimento. Tudo dá pra resolver com um bom funileiro – por isso, se o preço
for bom, não descarte o carro por isso.
Acabamentos externos
A grande vantagem de carro americano é que você encontra
quase todo tipo de acabamento. Frisos, vidros, para-choques (obs: o americano
tem o espaço da placa mais estreita e requer mudança de padrão de placas),
maçanetas, espelhos retrovisores, uma festa completa. Dois lugares bacanas para
se comprar peças de acabamento: a canadense PG Classic e a Year One. No Ebay
você também acha muita coisa. Para importar, você pode arriscar trazer na mala
em uma viagem (lembrando que nosso querido governo proibiu que peças
automotivas sejam trazidas como bagagem – por tanto, é loteria) ou usar uma
importadora, opção mais cara, mas mais recomendada.
Muitos falam das tais flautas de capô, mas as dos Charger de
1974 em diante são as mesmas do Dart GTS 1968, e custam cerca de US$ 350 lá
fora. Portanto, a dificuldade não está aí…
…mas sim, nos itens exclusivos do Charger brasileiro. Se a
gravatinha da grade (o sentido correto é o da foto abaixo) é reproduzida pela
Skill e por algumas outras empresas nacionais, a grade em si não. E encontrar
um par de grades 100% alinhado ou próximo disso é um parto. Um par de grades
zero km se aproxima dos R$ 1000 na praça. Um bom restaurador de frisos consegue
desmontá-la e deixá-la impecável.
A grande maldição dos Dodge desta época são as lanternas
traseiras. Entre 1973 e 1978, todos os Dodge V8 usavam lanternas traseiras
exclusivas no Brasil, o que significa que estas peças são raríssimas e custam
verdadeiras fábulas – um par em estado de zero km praticamente não existe mais
no mercado, e quando aparece, passa dos R$ 2.000. Os modelos 1973-1974 (imagem
da direita) possuem lente e moldura de acrílico integrados, os 1975-1978
(esquerda) possuem moldura de antimônio e lentes de acrílico. O antimônio tende
a formar bolhinhas com o passar dos anos.
Existem reproduções de lentes (de resina – não são tão boas)
e de molduras (de alumínio) e há quem restaure lanternas, caso do Fábio Jonas.
Nenhuma das alternativas é barata, e aqui não tem saída. Por isso, vale checar
com carinho as lanternas do seu futuro Charger – se o carro está salgado, elas
precisam estar em excelente estado.
O acabamento da tampa do porta-malas também é outra coisa
exclusiva que merece atenção: os Charger 73-74 possuem uma chapa de alumínio
inteiriça ligando as duas lanternas. Os 1975-1978 possuem uma faixa de vinil
(com a mesma textura do teto) emoldurada por frisos, como o R/T 1976 da foto
abaixo. Achá-los no caso de ausência é outra salgada dor de cabeça garantida.
E já que falamos em vinil, fica a dica: cada ano possui uma
textura de vinil diferente. Este é o tipo de detalhe mais extremo – mas,
dependendo do valor que você está pagando, sinta-se no direito de investigar e
cobrar por isso. O mesmo vale para os frisos: veja com atenção o brilho e a
presença de amassados, que podem ter ocorrido no desmonte para a restauração.
Tapeçaria
É assim que uma cabine de um excelente Charger R/T deve
parecer. Painel intacto com acabamento de madeira e rádio original (o
instrumento do meio deve ser um conta-giros – se for relógio, é um Charger LS
ou um Dart), console central (o famoso caixãozinho) no lugar e com acabamento
bom, forrações de porta inteiras (note o padrão) e preferencialmente sem furos
para alto-falantes (isso é bem raro). Observe com muito carinho se não há
trincos no bandô (a cobertura acolchoada do painel), pois uma tranqueira
dessas, original de época, pode custar mais de R$ 1.000. Mas existem
reproduções mais em conta por aí.
Estes bancos são dos modelos de 1976 a 1978. Neste exemplar,
o couro dos encostos é o original de fábrica e o dos assentos foi refeito. Note
a textura tipo “pele de cobra” da moldura dos bancos. A parte traseira deles é
de curvim, com textura quase igual à do couro. Não existe Charger R/T com
bancos de tecido (apenas o LS – mas são mosca cromada de olhos billet). Aliás,
bancos de Charger custam uma fortuna, portanto, fique esperto com isso. Dica:
eles usam a mesma estrutura dos bancos dianteiros do Dodge Magnum.
O volante de três raios da Walrod foi substituído pelo
“marmitão” de quatro pontas (similar ao
do Polara) em 1976. A Grant possui opções de madeira muito bonitas, baratas
(menos de US$ 200 já com o adaptador de cubo) e que não agridem a originalidade
do veículo (exceto para os colecionadores mais extremos). Dependendo do seu
perfil, vale o investimento.
Suspensão e freios
Esqueça “Os Gatões”: ao contrário do câmbio e do motor, a
suspensão dos Dodge V8 não é exatamente das mais resistentes – especialmente
suas buchas e bandejas. Obviamente isso não quer dizer que ela é feita de
açúcar: pode usar, abusar e confiar. Mas sua manutenção será mais frequente que
a do motor. Você encontra nos EUA todos os componentes menores, como pivôs,
buchas e terminais, de marcas como Moog e P-S-T. Até as barras de torção (o
Dodge não usa molas helicoidais) são facilmente encontradas lá fora. Os feixes
de mola são praticamente indestrutíveis e apenas requerem manutenção preventiva
– mas, caso faça questão, lá fora existem feixes aperfeiçoados, como os da
Hotchkis Sport Suspension.
Já as bandejas (ou balanças), tirantes e o quadro (também
conhecido como agregado) exigem mais atenção: você ainda encontra estes
componentes usados em bom estado no Brasil (e mesmo nos EUA), mas novos no padrão
original não existem mais. Meu conselho: faça os reforços estruturais no
agregado e nas bandejas inferiores (veja neste link do blog Mundo Monc) e use
bandejas superiores tubulares, que ainda possuem a vantagem de ter algum cáster
embutido. Recomendo as marcas RMS e Hotchkis. Buchas de poliuretano? Só nas
bandejas de cima e nos tirantes – nas balanças inferiores, use as Moog de
borracha mesmo. É um combo seguro, confiável e confortável.
Bem como o sistema de direção hidráulica da ZF, os freios
não são motivo para preocupação: as pinças são praticamente indestrutíveis e
usam o reparo da Varga para a empilhadeira C300Y e tudo pode ser reparado ou
importado – hidrovácuo, cilindro mestre (ainda se encontram novos no Brasil).
Evite reproduções de discos de freio: melhor comprar um par antigo em bom
estado e dentro de espessura tolerável e repassar.
Rodas e pneus
O Charger da foto de abertura usa as cobiçadas Magnum 500,
que custam uma fábula (restauradas, passam dos R$ 4 mil) e eram equipamento
original dos Charger R/T até 1973. Depois disso, o padrão mudou para as Rallye
com sobre-aros cromados, arinhos decorativos e calotinha central, como o do
Dodge abaixo.
As Rallye você encontra com facilidade no mercado – e as
Magnum 500 você pode importar novas (cada unidade custa cerca de US$ 150),
abrindo a possibilidade de se comprar logo um jogo de 15×7, que deixa o carro
com visual mais esportivo (é o tamanho que os Dodge e Mustang esportivos usavam
na época). O único detalhe é que o padrão de furação dos Dodge nacionais é da
Simca, 5 x 4,25, e todas as rodas americanas usam o padrão 5 x 4,5. Mas a
adaptação não é das mais complicadas.
Nas rodas originais, você deve usar pneus 195/70 ou 205/70
R14. O mercado está bem servido destes pneus – mas se você quiser modelos com o
clássico letrado branco, terá de importar um jogo de BF Goodrich (evite os
Cooper Cobra). A Phoenix Studio e a America Parts trabalham com importação de
pneus.
Motor
Absolutamente todos os componentes do motor você encontra em
lojas de performance, como a Summit Racing ou a Jeg’s. Não bastando isso, o V8
318 do Dodge é um dos motores mais robustos já produzidos no Brasil. Uma
dificuldade: o número de série do bloco (idealmente bate com o da plaqueta)
fica logo abaixo do cabeçote da bancada de cilindros do lado do motorista,
atrás da bomba da direção hidráulica (na foto, abaixo da mangueira do
radiador).
Dois típicos sintomas de motor cansado: ruído nos tuchos (o
famoso tec-tec-tec-tec) e pressão de óleo baixa, identificado pela luz da
pressão de óleo, que neste caso ficará piscando bem de leve. Ambos pioram
quando o motor está quente e o óleo afina, por isso vale a pena rodar bastante
com o carro ou esperar o motor esquentar. Dois clássicos upgrades são a troca
do sistema de ignição eletrônica original pelo sistema da MSD e a troca do
horrível carburador DFV 446 (que adora vazar gasolina sobre o coletor de
admissão – não se assuste se vir manchas ali) por um bijet da Holley ou mesmo
um quadrijet, que também exige a substituição do coletor de admissão.
Câmbio e diferencial
Eu não sei que raça de cavalo que você precisa ser para
quebrar um câmbio Clark 260-F de Dodge. Muitos – inclusive donos de Opala – o
usam na arrancada, mesmo após anos e anos de pegas nas ruas e nas pistas
durante toda década de 1980 e 1990. As únicas coisas que podem requerer
manutenção são o trambulador, que vai adquirindo folgas e perdendo precisão, e
os anéis sincronizadores – especialmente da 2ª e 3ª marcha – também se
desgastam, causando mini-arranhadas em trocas de marcha rápidas. Não faça esse
teste antes de o óleo do câmbio esquentar.
O diferencial Braseixos, original dos Dodge com câmbio
manual, são relativamente robustos, mas possuem limitações para quem gosta de
carros preparados, como a falta de um sistema autoblocante decente e a
limitação de relações. Neste caso, recomendamos a troca pelo Dana 44 dos Dodge
automáticos ou mesmo pelo Dana 44 do Maverick fase II, que tem bitola bastante
parecida.
Conclusão
Este foi um guia de compra com muito mais
pormenores que a média, porque a compra de um carro antigo é um processo
complexo e cheio de detalhes – e, bem, o fato de eu ter vivência com Dodges há
mais de 15 anos ajuda um bocado. De certa forma, muitas das coisas ditas aqui
servem para a compra de qualquer antigo: prioridade para a carroceria, checagem
de originalidade e integridade de detalhes, pesquisa de preços das peças mais
caras
Dos esportivos nacionais que você pode comprar, o Charger
R/T é uma das opções mais caras e há uma série de razões para isso: se é
verdade que você vai gastar muita grana em sua compra e no acerto de detalhes,
uma vez que o Dodge está redondo, pode esquecer e ir pra qualquer lugar do país
com ele. O carro é um tanque, delicioso de dirigir, e tem uma precisão e
ergonomia das mais legais que existem entre os carros da década de 1960 e 1970.
É um dos poucos antigos em que você se sente rapidamente em casa, em boa parte
graças à precisão do câmbio Clark, da direção hidráulica ZF com relação 16:1 e
dos freios, que são muito bons quando corretamente revisados.
Isso sem mencionar a sua personalidade. Conheço poucas
pessoas que não gostariam de ter um Charger. Há algo de hipnótico em sua cara
meio sinistra, que o departamento de estilo da Chrysler brasileira, na época
chefiada por Celso Lamas, conseguiu reproduzir do modelo americano. Nosso
Charger também é malvado.
[ Fotos: Juliano Barata para o Museu do Dodge ]
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